Analógico

Videogames, violência e o preconceito com as novas mídias

Videogames não foram os primeiros "responsáveis pela violência e corrupção dos jovens" — e, provavelmente, não serão os últimos.

Imagine, por um segundo, uma obra de entretenimento cujo herói seja um criminoso violento e mulherengo que comete vários crimes para cumprir seus objetivos. A obra em questão é popular principalmente entre jovens e crianças e, talvez justamente por isso, acaba sendo acusada de corromper as gerações mais novas, torná-las violentas e influenciá-las a cometer crimes na vida real.



De que jogo estou falando? Doom (PC)? Postal (PC)? GTA V (Multi)? Call of Duty (Multi)?
Falem o que quiser, mas ainda acho que Mario Party causa bem mais violência que todos esses jogos juntos.
A resposta certa é: nenhum. Estava me referindo à “Ópera dos Vagabundos” (The Beggar’s Opera), peça de teatro lançada originalmente em 1724. Uma das primeiras óperas de balada da história, a obra revolucionou o teatro do inglês com seu estilo popular e linguagem acessível. Sua popularidade foi proporcional à sua polêmica. Muitos criticarem a vulgaridade da trama e, principalmente, a presença de Macheath, o vilão protagonista da história, que seria uma glorificação do crime e hedonismo. Alguns críticos chegaram a identificar a composição teatral como responsável direta pelo aumento de crimes e violência na Europa.
“Os efeitos da Ópera dos Vagabundos na mente das pessoas cumpriu os prognósticos de muitos de que que se provariam danosos para a sociedade. Roubos e violência têm aumentado gradualmente desde sua primeira representação. Jovens e aprendizes sentem-se cativados pelos charmes da ociosidade e prazer criminal. Homens de discernimento que têm trabalhado duro em achar a fonte desses males descobriram que muitos dos criminosos condenados nos últimos cinquenta anos estiveram em seus caminhos tentando imitar as ações e caráter de Macheath.”

Sir John Hawkins, em A general history of the science and practice of music, 1789
Maldito teatro, tornando as crianças violentas!
 Qualquer semelhança com as declarações de Jack Thompson sobre GTA e outros jogos violentos não é mera coincidência.

O novo Rock & Roll

Jogos violentos como Doom e GTA são apenas o último exemplo de uma longa cadeia de preconceitos que já incluiu cinema, televisão, música, quadrinhos e, como o caso acima bem demonstra, até teatro. Historicamente, novas formas de entretenimento sempre enfrentam alguma espécie de resistência dos setores mais conservadores da sociedade à medida que ganham popularidade — principalmente entre jovens e crianças. Em última instância, as novas mídias acabam sendo responsabilizadas, direta ou indiretamente, pelos mais variados tipos de mazelas sociais.
Mas os videogames são claramente os responsáveis pela violência!
Uma das maiores influências nesse processo é o medo do novo e desconhecido. Em grande parte, novas mídias sofrem preconceito simplesmente por serem novas. O ódio irracional, afinal, não passa de uma ignorância destilada pelo medo.
Infelizmente, em muitos casos a religião acaba agindo como catalisador deste evento, com discursos alarmistas que são bem apelativos para algumas pessoas. Foi desta forma que, por exemplo, várias bandas de Hard Rock quase foram censuradas nos anos 1980 nos Estados Unidos devido a ação de um grupo, até ser criado um selo que marcasse discos com “conteúdo explícito”.


Histeria ainda maior afetou o mercado de quadrinhos nos anos 1950 após o lançamento do livro Seduction of the Innocent (“Sedução dos Inocentes”, em tradução livre), do psiquiatra Frederic Wertham. Segundo o médico, delinquência juvenil, violência e até mesmo homossexualidade (!) seriam alguns dos efeitos dos quadrinhos nos jovens. A polêmica gerada na época foi suficiente para chamar a atenção do congresso americano e criar uma agência reguladora (e censora) para a indústria, a Comics Code Authority.
E é por isso que não existem
mais homossexuais hoje em dia!
Mas a ignorância não é o único elemento a influenciar o preconceito com as novas mídias. Fatores econômicos também têm seu papel. Quando a televisão foi reintroduzida nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, logo formou-se um lobby contra a nova indústria que tentava desacreditá-la e denunciar seus efeitos negativos na sociedade. Sem muitas surpresas, esse lobby era fomentado pelos barões da imprensa e cinema, apavorados com a possibilidade de perder parte de se mercado com a adoção em massa da TV.

No decorrer da história, há muitos outros casos de novas formas de mídia e entretenimento sofrendo alguma forma de resistência. Nem mesmo a literatura escapa impune: Sócrates, na Grécia Antiga, via a linguagem escrita com hostilidade, advertindo seus discípulos quanto aos efeitos negativos trazidos por ela, engessando ideias, tornando homens preguiçosos e privando as mentes do pensar.
“Essa descoberta, na verdade, provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiados na escrita, recordar-se-ão de fora, graças a sinais estranhos, e não de dentro, espontaneamente, pelos seus próprios sinais.”

Sócrates, no diálogo de Platão Fedro
Em pensar que hoje em dia ler muito é sinal de inteligência…

O que era novo, um dia fica velho

Em todos estes os casos, entretanto, é notável que o preconceito com as novas mídias desapareceu tão logo elas deixaram de ser… novas! Hoje em dia, dificilmente alguém é criticado por gostar de TV ou cinema. Os quadrinhos, antes considerados infantis, tornaram-se parte da cultura popular e são consumidos principalmente por adultos. Já o Rock & Roll deixou de ser considerado apenas “barulho cheio de indecências” há muito tempo — tal alcunha agora recai sobre novos gêneros musicais, como funk, hip-hop e pop modernos. Que dizer, então, do teatro e literatura? Tais formas de entretenimento chegam até mesmo a serem idealizadas hoje em dia e as pessoas que as consomem vistas como intelectuais e cultas.
Sócrates teria um ataque.
Videogames e outras formas de comunicação e entretenimento modernas (como a internet e redes sociais) já estão no meio deste processo. Pouco a pouco, as gerações que cresceram com um joystick na mão e não tem preconceitos com os jogos começam a ganhar mais espaço no mercado e mídias. Talvez no futuro jogar um clássico como The Legend of Zelda (NES) e Super Metroid (SNES) seja considerado tão "cult" quanto ir ao teatro assistir à Opera do Vagabundos?
“Toda mídia ou indústria nova que cresce rapidamente é criticada. Isso é porque a mídia mais velha e estabelecida estava aí há mais tempo e muitos adultos podem ser bem conservadores. Eles podem não ter uma mente aberta para novas coisas que não existiam quando eles estavam crescendo, e que agora estão substituindo as coisas que eles usavam na infância…”

Shigeru Miyamoto
 Só espero que eu não acabe inconscientemente entrando nesse ciclo e hostilizando mídias do futuro, falando aos meus filhos e netos como “videogames da minha época sim eram bons, não essas porcarias de realidade virtual”.
Na minha época, jogos tinham botões!


Revisão: Leonardo Nazereth
Capa: Felipe Araújo

Escreve para o GameBlast sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0. Você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.
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