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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.2 Braga  2013

 

Comentário a “democracia e anti-liberalismo”(capítulo VI)

Marta Nunes da Costa*

*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Centro de Estudos Humanísticos, 4710-057 Braga, Portugal.

nunesdacosta77@gmail.com

 

No sexto capítulo de Futuro indefinido: Ensaios de Filosofia Política, João Cardoso Rosas oferece-nos uma leitura crítica da relação entre democracia e liberalismo, apontando para as convergências e divergências teóricas e práticas ou históricas entre ambos. De acordo com o autor, temos tendência para pensar as democracias contemporâneas dentro de um horizonte definido por parâmetros e critérios ditos liberais. Porém, como o mesmo reconhece, vivemos num ambiente de tensão permanente entre, por um lado, um discurso, bem ou mal fundamentado, sobre a democracia enquanto poder do povo e por outro, um discurso que visa reforçar o papel do indivíduo enquanto agente moral e politicamente livre. Embora muitos possam ter tendência para convergir ambos os planos – de governação e de direitos individuais – a verdade é que democracia e liberalismo têm uma história de conflito e desarmonia, que só nas últimas décadas alcançou uma resolução aparente, estando contudo sujeita a diferentes interpretações, consonante o país ou democracia em análise. Apesar deste conflito imanente, Rosas defende que as democracias devem ser sempre pensadas no contexto liberal, e que as próprias correntes anti-liberais adquirem o seu sentido mais profundo num estado democrático.

Olhemos então para o argumento defendido pelo autor. Na análise histórica do conceito e práticas de democracia, Rosas começa por apoiar-se na distinção entre a democracia (e liberdade) nos antigos e nos modernos, iluminando o percurso histórico – e polémico – da democracia. Podemos retraçar a experiência democrática à polis ateniense, mas mesmo aquando desta, o modelo era alvo de ataques. Platão, por exemplo, denunciou a democracia como modelo próximo da anarquia, defendendo uma oligarquia especifica, onde os melhores deveriam governar – os melhores, definidos por mérito e educação, e não por hereditariedade. A visão da democracia enquanto modelo indesejável manteve-se em vigor, dentro da filosofia política, até ao século XX, onde encontramos autores como Schumpeter a defender uma concepção de democracia enquanto processo político e mínimo necessário para a legitimação do governo, excluindo, porém, toda a sua vertente mais participativa ou radical. Dahl e Sartori são outros autores que defendem a limitação das nossas leituras democráticas e projeções acerca das expectativas da própria democracia. Seria, no entanto, errado pensar que as posições destes autores traduzem um consenso quase hegemónico sobre a conceptualização e instanciações democráticas. Como Carole Pateman bem denuncia na sua obra incontornável Participação e Teoria Democrática (1970), não há uma teoria democrática, nem uma teoria democrática ‘clássica’; há sim várias teorias democráticas, cada uma refletindo um conjunto de ideais e prioridades político-institucionais. O que importa sublinhar, de acordo com Rosas, é que a recuperação dos ideais democráticos em geral – quer na sua vertente mais procedimentalista, quer na sua vertente mais substantiva – só foi possível a partir de finais do século XVIII, com a experiência do liberalismo.

Liberalismo, na sua acepção original, remete para a introdução do constitucionalismo moderno, e não deve ser entendido apenas como mutação ideológica especifica do século XX e XXI. Como Rosas diz, “o liberalismo consiste na defesa teórica e nas instituições jurídicas de protecção dos direitos naturais do homem – na linguagem jusnaturalista – e dos direitos fundamentais do cidadão, a começar pelos civis e políticos, mas podendo alargar-se aos direitos sociais. Para o liberalismo, o poder legítimo assenta no contrato e na utilidade social. O princípio do império da lei predomina. A soberania reside, em última instância, no povo ou na nação. Mas esse poder é exercido por representantes nomeados pelo soberano, embora dividido em diferentes poderes e sujeito a um esquema de freios e contrapesos.” (p. 90)

Percebe-se, desta passagem, que a relação entre democracia e liberalismo nunca pode ser óbvia. Porém, as dificuldades desta relação assentam numa mutação mais profunda, na medida em que a introdução do liberalismo obrigou a uma reformulação do conceito original de democracia. Retrospectivamente, podemos observar como o modelo político promovido a partir do século XVIII assentava na representação política. Esta representação visava contrabalançar os perigos eminentes potencialmente presentes numa política mais participativa, garantindo ao mesmo tempo uma participação, porém, mediada, pelos representantes.

Esta é a nossa herança. Falar de democracia hoje é falar da ‘democratização dos regimes liberais’, de democracia representativa, ou, por outras palavras, de um sistema político que assenta na relação primordial entre representantes e representados. Mas à medida que os direitos políticos foram progressivamente projetados como fundamentais, a experiência democrática alterou-se, abrindo campo para novos modelos políticos que passariam a articular a dimensão representativa com as dimensões participativa e deliberativa.

A coexistência destas dimensões traduziu-se na proliferação de discursos políticos que são normalmente designados por ‘anti-liberais’. Porém, estes discursos só se desenham e se afirmam como pertinentes por estarem desde logo enquadrados no horizonte conceptual do liberalismo. Quer entendamos o liberalismo como fenómeno essencialmente político, ou como fenómeno também económico, o liberalismo esteve até ao século XIX associado à esquerda. Porém, seria simplista pensar que o liberalismo é isto. Há tantas correntes liberais como autores que as propõem, daí que para o mesmo conceito possamos encontrar leituras dispares, mesmo que suportadas pela partilha de teses centrais.

Rosas denuncia e expõe a complexidade do liberalismo e das suas diferentes correntes, assim como das suas críticas. Depois de retraçar alguns dos argumentos centrais dos anti-liberais, Rosas mostra como essas críticas assentam numa leitura redutora e simplificada do liberalismo. Com efeito, ser liberal não implica necessariamente defender uma visão atomista da sociedade, mesmo sendo considerada como essencialmente individualista. Além disso, o individualismo subjacente ao pensamento liberal não invalida a adopção de uma – ou várias – concepções de bem comum. Rosas sublinha ainda o facto de o liberalismo não poder ser confundido com relativismo ou cepticismo moral tout court, já que o liberalismo por si só engloba várias visões do mundo e da sociedade política.

É verdade que pensar hoje na democracia implica, quase de forma automatizada, pensar no fundo liberal da sociedade que se quer e diz democrática. Porém, como mencionei acima, a reflexão sobre a relação entre democracia e liberalismo assenta num modelo democrático específico – e dominante – que é o modelo representativo. As tendências de democratização da sociedade, sobretudo pela expansão de mecanismos participativos e deliberativos – como por exemplo a iniciativa popular, orçamento participativo, referendo, entre outros – pode parecer anti-liberal na sua natureza, se adoptarmos a visão mais simplista de liberalismo enquanto defesa de direitos individuais específicos constitucionalmente determinados. Mas poderíamos olhar para a questão de outro ângulo, e dizer que esses mecanismos não só visam o aprofundamento das democracias contemporâneas, como o próprio desenvolvimento e atualização dos direitos individuais, na medida em que os indivíduos, enquanto agentes morais e políticos autónomos, passariam a controlar de forma mais direta (e participativa) o seu destino pessoal assim como o destino da sua comunidade. Assim, o que parece inicialmente como anti-liberal torna-se um fenómeno de redefinição do paradigma democrático, numa era em que as crises do sistema representativo são incontornáveis e exigem respostas institucionais, substantivas e de políticas públicas.

Assim, queria mencionar alguns factores que considero importantes não só para repensar a relação entre democracia e liberalismo, mas também a redefinição do paradigma democrático.

O tópico da representação política e da relação desta com a democracia tem sido alvo de vários trabalhos por diferentes autores desde sempre. Não entrarei aqui nos detalhes do debate, até porque para o nosso propósito interessa realçar a transformação que essas leituras estão tomando.

Em qualquer teoria da representação (política), há vários elementos que devem ser explorados:por um lado,o carácter dinâmico e a relação de interdependência entre representantes e representados. Representantes existem porque representam os representados e vice-versa; porém, a representação não é um fenómeno estático e permanente no tempo, no sentido em que quem representa não fica ad eternum na posição de representante; a representação é uma relação que se afirma na sua legitimidade ao longo do seu próprio exercício, implicando o reconhecimento da validade das demandas por parte dos representados, que encontram corpo e voz nos representantes. Por isso, essa relação deve traduzir as próprias mutações e transformação das demandas, interesses e posições dos cidadãos ao longo do tempo; a legitimidade da relação representativa assenta na capacidade de escutar e traduzir as várias demandas, em vários momentos no tempo e no espaço, no domínio político do processo de deliberação, constituição da agenda política e tomada de decisão. Defendo, por isso, uma concepção mais orgânica de representação, seguindo a linha de Saward (2010), e contrariando a tendência dominante de pensar representação através de uma leitura essencialista baseada em interesses e necessidades ossificados dos cidadãos. Representação deve implicar sempre reciprocidade e mútua constituição, apoiando-se em estratégias de comunicação eficazes.

Hoje, a demanda pela reciprocidade torna-se mais gritante, na medida em que muitos cidadãos não se sentem representados pelos representantes oficiais. Com efeito, encontramos desafios à representação política em várias frentes: por um lado, podemos identificar um hiato na relação representativa tradicional, isto é, pensada através das instituições políticas representativas de deputados, parlamentos, assembleias, entre outros. A política partidária não é suficiente nem capaz de responder à multiplicidade (quantitativa e qualitativa) de demandas de cidadãos. Por outro lado, a constelação pós-nacional (Habermas 1998) do século XXI, obriga-nos a expandir e redefinir o conceito de ator político, que não está necessariamente determinado pela dinâmica da relação representativa tradicional. Com efeito, alguns atores políticos não estão sujeitos aos mecanismos clássicos de responsabilização, nem de justificação política ou controle democrático. Além destes dois factores, encontramos um terceiro, a saber, a proliferação de instituições políticas representativas que se projetam à escala global mas cuja representatividade não está definida nem nos seus parâmetros, nem na sua legitimidade. Quem representa quem, como e porquê? Esta é uma leitura breve de elementos que obrigam a repensar o paradigma representativo democrático.

Para responder a alguns destes dilemas, autores contemporâneos como Mansbridge (1980), Pateman (1970), Gutmann e Thompson (2004) ou Benjamin Barber (1984) oferecem alternativas à conceptualização e prática democráticas. Cito Barber quando diz

“[d]emocracia só pode sobreviver como democracia forte, assegurada não por grandes líderes mas sim por cidadãos competentes e responsáveis. Ditadura eficaz requer grandes líderes. Democracias eficazes requerem grandes cidadãos. Somos livres somente enquanto somos cidadãos e a nossa liberdade e a nossa igualdade só duram enquanto dura a nossa cidadania. Talvez nasçamos livres, mas só morremos livres quando trabalhamos na liberdade nesse intervalo.” (Barber, 1984, preface to the 1990 edition, xxix)

Esta passagem é elucidativa pela forma como recoloca a questão da natureza da própria democracia. Se a democracia representativa está em crise, fará sentido olhar para a forma como os mecanismos representativos sobre a qual se baseiam se podem transformar, apostando na redefinição da relação entre as vertentes representativa, participativa e deliberativa.

Autores como Barber ou Arendt defendem que a política democrática se afirma pela participação e ação cidadã. Ser cidadão de uma comunidade democrática não pode significar apenas deter certos direitos (individuais), mas também cumprir deveres perante si mesmo, enquanto indivíduo autónomo e membro de uma comunidade mais vasta. O conceito de liberdade (sob o qual o liberalismo se edifica e constrói) adquire assim um carácter mais dinâmico e de permanente atualização. Ser livre é ser cidadão, e isso implica participar e agir de forma concertada na vida pública e política, visando um bem comum no qual os direitos individuais possam ser maximizados.

Muitos países têm sentido a necessidade de reconfigurar as tradicionais instituições representativas, introduzindo novos mecanismos participativos que possam dar resposta às demandas cidadãs, ao mesmo tempo que possam espelhar o vinculo entre o cidadão e a comunidade política. Olhemos para o exemplo do orçamento participativo, que começou em Porto Alegre, no Brasil, em 1989 e que hoje está espalhado pelos vários continentes. Mas esse é apenas um exemplo que cumpre o seu papel, ou seja, que demostra quão necessário é para a democracia se manter aberta à transformação e mudança, não se deixando iludir por ideais até totalitários.

O reconhecimento da importância da participação política vem reforçar a necessidade que as democracias têm de se redefinir constantemente. Se a democracia é atualidade e utopia, enquanto projeção de um futuro onde os seus ideais simultaneamente nos pautam a conduta e nos guiam pelo caminho, depreende-se que a relação entre democracia e liberalismo está também ela em constante mutação.

Mas a vertente mais participativa da democracia não é a única resposta às crises da representatividade. Podemos encontrar no paradigma da democracia deliberativa outros exemplos de reconstrução do espaço político e do cidadão democrático. Neste paradigma a reflexão desempenha um papel essencial na vida democrática. Deliberação deve ser entendida simultaneamente como processo (deliberativo) e como finalidade ou objectivo a alcançar. A deliberação assenta nos princípios da reciprocidade – ou reconhecimento de igualdade moral e política entre todos os que participam do processo – e da publicidade. A publicidade aqui remete-nos à máxima kantiana do pensamento alargado, funcionando por isso como teste de legitimidade das máximas proclamadas pelos indivíduos.

O que a experiência da deliberação nos ensina é que as preferências que um indivíduo possa ter são sempre resultado de um contexto económico, político, social e cultural específico, ou como Foucault diria, são sempre a tradução de um a priori histórico. Por outro lado, ela também nos mostra que essas preferências podem mudar, a partir do processo deliberativo entre vários indivíduos. O objectivo deste é alcançar soluções mais justas para os indivíduos, sempre pensados a partir e no âmbito deuma comunidade política. Em poucas palavras podemos dizer que o paradigma deliberativo obriga a reequacionar a forma como os interesses e demandas se constroem e se projetam, assim como a forma como cada indivíduo lida e aceita (ou não) a carga da responsabilidade individual e coletiva.

Para concluir, reitero a importância de repensar a relação entre democracia e liberalismo, tendo em conta os diferentes paradigmas democráticos, liberais e anti-liberais. O que a crise da representatividade democrática nos ensina é que a democracia se traduz e se manifesta pela tensão constante entre os seus ideais fundadores de liberdade e igualdade. Para que ambos se concretizem é preciso articular as diferentes dimensões democráticas de representação, participação e deliberação, procurando construir um modelo ou teoria mais apto a explicar a atual realidade, e a prever futuras crises. A participação política tem-se afirmado como elemento essencial à saúde do projeto democrático – não só político mas também social e económico. Sem participação não há democracia. Nesse sentido, os direitos individuais – direitos de primeira, segunda, terceira e quarta geração – só poderão atualizar-se plenamente quando as estruturas dominantes de política representativa se abrirem às propostas oferecidas por mecanismos participativos e deliberativos.

Referências

Arendt, Hannah (1963/2006) , On Revolution, London, Penguin Classics        [ Links ]

Barber, Benjamin (1984/2003) Strong Democracy – Participatory Politics for a new Age, University of California Press        [ Links ]

Dahl, Robert, (1989) Democracy and its Critics, Yale University Press        [ Links ]

Gutmann, Amy, and Thompson, Dennis (2004) Why deliberative democracy? , Princeton University Press        [ Links ]

Mansbridge, Jane J., (1980), Beyond Adversary Democracy, Chicago University Press.         [ Links ]

Pateman, Carole, (1970) Participation and Democratic Theory, Cambridge University Press.         [ Links ]

Pitkin, Hannah F., (1967/1992), The concept of Representation, University of California Press        [ Links ]

Saward, M. (ed). (2000) Democratic Innovation – Deliberation, representation and association, Routledge/ECPR.         [ Links ]