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Entretenimento

Por Dentro da Boca

Ozualdo Candeias, o ex-caminhoneiro de bigode cabuloso que inspirou com seu cinema autoral ganha exposição de fotos inéditas.

Colagem com os filmes de Ozualdo Candeias

Talvez você saiba, talvez não, mas fato é que o Ozualdo Ribeiro Candeias (1918-2007) é uma das maiores referências do cinema autoral brasileiro. Durante as quatro décadas de sua vida dedicadas ao Cinema Marginal dentro da Boca do Lixo, o ex-caminhoneiro de bigode cabuloso inspirou muita gente com os 35 filmes e 12 telefilmes que assinou. Além disso, ele também compôs um acervo fotográfico (praticamente inédito) que narra o cotidiano das produções de lá.

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Nesse mês o MIS dedica seu espaço a fotografia, comportando diversos eventos e exposições, e uma delas é dedicada ao Candeias. Com curadoria do cineasta e fundador da Heco Produções Eugenio Puppo, Ozualdo Candeias – Rua do Triumpho traz ao público as imagens de atrizes, diretores, equipamentos de filmagem, fachadas, as refeições no restaurante Soberano e grande parte do bairro paulistano da Luz feitas durante esses 40 anos. As fotos chegaram a ser editadas no ano de 2001 pelo próprio Candeias e por sua filha Simone Candeias e transformadas num livro com o mesmo nome do epicentro da Boca, Rua do Triumpho. Lançado de forma independente, o livro teve uma tiragem de apenas 200 cópias por motivos financeiros.

Na exposição há uma tela gigante em formato touchscreen na qual é possível acessar o conteúdo de seu livro na íntegra, além de 19 ampliações de colagens fotográficas, uma videoinstalação ambientada numa minissala de cinema intitulada Cinema, que apresenta três curtas de Candeias, Uma Rua Chamada Triumpho 969/70, Uma Rua Chamada Triumpho 1970/71 (ambos montados a partir das fotografias do Candeias) e Festa na Boca. As cadeiras que compõem essa saleta foram compradas do Cine Marabá – onde Candeias realizou a estreia de seu primeiro longa, o cultuado A Margem, em 1967, que depois vai ajudar a batizar a produção experimental de autores como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. Mais cinco projeções em telões e uma televisão DRS que exibe uma reportagem gravada em VHS sobre a Boca do Lixo completam o panorama.

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Festa da Boca

Conversamos com o Eugenio Puppo sobre sua exposição, fruto de mais de 11 anos de pesquisa. Ele nos contou como conheceu o Candeias, sobre seu trabalho com exibição e distribuição de filmes fora do circuito comercial, o papel que o cinema tem como educador e a importância do acervo audiovisual deixado por Candeias para nós.

VICE: Conta pra gente como você conheceu o Candeias.
Eugenio Puppo: Em 1999 estava fazendo uma pesquisa sobre o Cinema Marginal brasileiro, que resultou na Mostra Cinema Marginal realizada no CCBB no ano seguinte. Frequentava o Cinesesc com o Rogério Sganzerla e a gente sempre saía pra tomar uma cerveja e conversar sobre cinema. Nós fomos ao relançamento do livro do Jairo Ferreira, Cinema de Invenção, e o Candeias estava lá, nós fomos apresentados e fiz minha primeira entrevista com ele. Continuamos nos falando e trocando material. No ano seguinte fui até a Boca do Lixo e sugeri que fizéssemos uma mostra com seus filmes. Ele não acreditava que podia dar certo, que o público poderia se interessar pelo seu cinema. Quando a mostra estava acontecendo (no CCBB), ele notou o prestígio do pessoal que estava assistindo seus filmes – apresentamos quarenta deles, e ele próprio passou a frequentar o evento, com discrição, mas esteve presente lá.

Você vê diferença no público que consumia aquele cinema na época em que ele estava sendo realizado para o público de hoje?
Sim, o público era menos alienado. Hoje nós temos vários meios de comunicação disponíveis e vemos que a tendência é a superficialidade de linguagem. Durante a ditadura as projeções eram feitas de maneira clandestina, tudo escondido. E hoje você vê que o público fica abestalhado quando veem esses filmes – porque ainda há muito que entender dessa linguagem. Tudo era mais intenso, mais humano, mais sujo. O cinema hoje é asséptico, quer ser internacional.

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Falando em “querer ser internacional”… Você acha que o espectador brasileiro aceitava melhor sua realidade diante da tela? Me parece que quando um filme nacional com a temática/estética de pobreza, miséria é sucesso lá fora, há um certo constrangimento aqui…
Sim. E a miséria também era maior. Era o público que eles queriam conquistar. Eles imergiam nessa abordagem da miséria. A mensagem era o que importava. Tudo tinha mais profundidade.

Hoje, se você experimenta muito, seu filme corre o risco de não passar na TV, não ser exibido. Se um filme tem três horas ele precisa desse tempo para transmitir sua mensagem, você não pode interromper isso, e as pessoas acabam desistindo de produzir algo mais intenso por isso. As decisões dominantes hoje são decisões mercadológicas. Porém, qual é o sentido dessa preocupação de público? Essas preocupações deviam ser reservadas apenas para empresas como Globo Filmes, O2. E isso não é só no Brasil e não só no cinema. Recentemente fui à palestra do Peter Greenway na Sala São Paulo e ele comentou sobre a BBC de Londres, que tinha como proposta a educação e hoje é entretenimento.

José Mojica Marins e as unhas do Zé do Caixão

Esse ano alguns filmes da Boca do Lixo foram selecionados para exibição no Festival de Roterdã. Como você acha que o público lá de fora recebe esses filmes?
Sim. Os filmes que foram selecionados eram de um apelo mais sexual, mas também foram exibidos outros que não tinham apenas essa temática, como Orgia, o homem que deu cria. O que esses filmes têm que chamam a atenção do público, e não só lá de fora, é a irreverência, o que o cinema não tem mais hoje.

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Nós sabemos que o cinema sempre teve uma vocação industrial, mas o incentivo hoje aos filmes comerciais é muito maior, então o público vai atrás desses filmes como o da Boca. Nós precisamos de gente que invista nesses filmes. O Cinema Marginal está em extinção. Estava assistindo ao Roda Viva essa semana e o convidado era o José Arthur Giannotti e ele estava falando que desde sempre nós criticamos a elite, e quando vamos falar sobre os responsáveis pela fomentação da arte no mundo não podemos ignorá-los, certo?

Isso me incomoda muito, a ocupação das pessoas hoje é a de reclamar e reclamar nas redes sociais apenas, elas ficam lá o dia todo no Facebook, comentando fatos de maneira superficial, hoje você não precisa de profundidade, você lê o título, a linha fina de uma notícia e sai reclamando por aí.

E essa superficialidade se reflete no cinema hoje. Acho que o cinema não pode perder o seu papel formador. Nos anos 70 você via cenas quentes, e não estou falando só sobre cenas de sexo, estou falando de intensidade, de entrega.

Me fala mais sobre o trabalho do Candeias como fotógrafo.
O Candeias sempre se colocou na condição de marginal e muitas vezes ele não dava muita importância para si, mas acho que era para não ter que se explicar tanto, sabe?
Ele criou uma documentação sem muito critério, registrando as situações que ele vivia na Boca e nos seus arredores. Ele começou a fazer isso quando percebeu que aquela gente estava unida, trabalhando para um público que eles estavam conseguindo atrair. Mas pra mim ele era um perfeccionista, os ângulos que ele tirava aquelas fotos eram pontos de vista criteriosos, ele usava rolos de filmes ASA 100, ASA 50 em suas câmeras Exakta 50mm e Nikon, para registrar as atrizes, os diretores, os equipamentos, as prostitutas que passavam por ali, o Parque da Luz. Na verdade o Candeias queria fazer um catálogo da Boca do Lixo com esses documentos.

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Transporte de filmes na Boca do Lixo

Como você acha que ele alcançou essa versatilidade de público, do espectador que se identificava com a os temas abordados em seus filmes e com a admiração da crítica?
A crítica achava curioso o fato de ele ter sido caminhoneiro e ter se interessado pelo cinema. E esse interesse dele surge quando ele vê que os grandes estúdios estão fechando em São Paulo. Ele estudou no Seminário de cinema do MASP entre 1955-57 e passou a devorar os manuais. O Candeias era um cara que abria a câmera pra ver como ela funcionava. E isso começou a chamar a atenção da crítica: como um ex-caminhoneiro pode fazer filmes com tal profundidade, e a classe mais humilde se identificava com as questões que ele abordava nos filmes.

Nu em grande angular - a gente não sabe quem ela é, mas a Heco mandou ela pra gente e quisemos compartilhá-la com vocês

Ozualdo Candeias - Rua do Triumpho

De 04 de maio a 24 de junho de 2012
Horário de visitação: Terças a sextas, das 12 às 21h Sábados, domingos e feriados, das 11 às 20h
Local de exibição: Espaço Expositivo,  2º andar
Entrada: R$ 4 (meia entrada para estudantes)
O MIS fica na Avenida Europa, 158, São Paulo - SP
Telefone: 2117-4777 Quem estiver interessado em saber mais sobre Ozualdo Candeias e o cinema da Boca do Lixo pode acessar a página do cineasta no Portal Brasileiro de Cinema.

Dentre os novos lançamentos da coleção de Cinema Marginal da Heco Produções está com um DVD com os filmes Meu Nome É Tonho, Zézero e A Visita do Velho Senhor, de Candeias.

Ainda esse ano o Eugenio pretende lançar seu documentário Ozualdo Candeias e o Cinema, o site do projeto é esse aqui: www.ozualdocandeias.com.br