Gilberto Freyre na Flip Parte 2, ou: O impasse de FHC

Ou Fernando Henrique Cardoso leu Leo Strauss, ou eu vivo em um mundo dominado pela newspeak de George Orwell.

Infelizmente, a última opção é a mais provável. Em sua palestra de abertura da FLIP, FHC discorreu sobre Gilberto Freyre, autor que deveria ser homenageado, mas que acabou por ser esculhambado por todos que resolveram discuti-lo.

Não por culpa do morto, que tem uma obra que ficará acima de tudo o que já foi dito sobre ele, mas sim por culpa de seus “admiradores”, a começar pelo ex-presidente da República.

Até agora, não sei o que ele queria ao fazer sua palestra sobre Freyre. O texto em si, publicado no Estadão.com, é um primor de scholarship acadêmica a lá USP, com a clareza de explanação, as fontes bem citadas, o raciocínio que pende entre a admiração e o ceticismo, características da turma da antiga Maria Antônia. Enfim, tudo aquilo que se esperava do princípe dos sociólogos.

Contudo, a palestra em si, feita em um “clima descontraído de bate-papo” (uma destas expressões que o jornalismo cultural usa quando não se entende direito os conceitos expostos…), mostra um FHC que insiste em classificar Gilberto Freyre como “conservador” e “racista”, termos que, no nosso mundinho politicamente correto, são sinônimos depreciativos.

Ora, quem viu e depois leu a palestra achará que foram escritas por duas pessoas diferentes. Da minha parte, dei o benefício da dúvida a Fernando Henrique: achei que ele praticava a linguagem cifrada descrita por Leo Strauss em seu Persecution and the art of writing e estava enganando todo mundo.

Mas não estava.

Tudo bem, admito que a oralidade de uma palestra pode levar a uma certa imprecisão. E nisso não responsabilizo o ex-presidente, que, afinal, não pode forçar o público a compreender exatamente o que ele quer. Mas a reação do jornalismo cultural que fez a cobertura do evento ecoou a versão politicamente correta da palestra, chegando ao ponto de, olhem só, repetir sem pensar (e, o mais sério, sem checar) os bordões de “racista” e “admirador de regimes fascistas” para o coitado do homenageado.

O problema de toda esta situação é que a obra de Gilberto Freyre não admite compartimentos ideológicos. Neste caso, temos até de admirar a iniciativa da FLIP em homenagear um sujeito de matizes tão complexos. Porém, como o próprio Freyre dizia, ele não era um sociólogo – e sim um antropólogo que, ao iniciar novos métodos de pesquisa (reconhecidos por FHC em sua palestra escrita), unia o homem com a sociedade e apresentava um novo painel cheio de contrastes e paradoxos. E o paradoxo, como se sabe, confunde a mente de muitas pessoas. Para expressá-lo, Freyre decidiu investir em um estilo proustiano, que recuperava simultaneamente a memória pessoal e coletiva, usando de toda a plasticidade da língua portuguesa para que o leitor tivesse a mesma impressão de que o tempo, este bichinho fugidio, podia ser recuperado na intensidade da experiência histórica original.

Agora, imaginem Florestan Fernandes ou Caio Prado Júnior fazendo o mesmo. Não conseguem, hem?

O impasse de FHC – uma característica que o faz ser considerado o nosso Hamlet tupiniquim – é o mesmo impasse da nossa elite acadêmica e intelectual. Quando nos deparamos com uma obra única que a mente humana não pode abarcar sem cair nas gavetinhas do pensamento, não sabemos se devemos nos curvar a ela, com a humildade necessária, ou desprezá-la como os adolescentes que querem provar que são sempre originais.

Na FLIP 2010, fizeram isso com Gilberto Freyre. Só espero que, da próxima vez, os organizadores do evento tenham mais finesse e escolham um outro homenageado que se adeque aos interesses de seu público. O próprio Fernando Henrique sugeriu o nome de Sérgio Buarque de Hollanda. Tenho outra sugestão que acalmará os nervos: Que tal Santo Antonio Gramsci, ora pro nobis?

5 comentários em “Gilberto Freyre na Flip Parte 2, ou: O impasse de FHC

  1. Caro Martim Vasques da Cunha,

    Indubitavelmente, Gilberto Freyre é carente de maior exploração na academia brasileira, sobretudo, por razões ideológicas. Porém disso não se segue que esteja livre das críticas. E aqui vai minha breve crítica ao teu comentário. Penso que teu artigo esteja um tanto vago: ficamos sem saber a que argumentos de FHC tu contrapões argumentos. Em que bases tu argumentas? Creio que seria oportuna a distinção do pensamento freyreano em sua expressão sociológica ou antropológica, e sua visão de mundo. Quanto a esta, ser Freyre conservador ou não deve ser muito bem argumentado mostrando que traços de seu pensamento o poderiam classificar assim, ou quais não possibilitaria que assim fosse feito. Quanto àquele, seria um grande ganho a crítica separando-se, deste modo, o científico do ideológico. E não se pode deixar de lado o fato de Freyre ter pensado balizado pelo conceito de raça, o que não quer dizer que suas explicações repousem numa redução a um a-priori não interativo, a um essencialismo. Isto, sim, é tema para debate. Em que termos poderíamos apreciar da melhor maneira seu pensamento?
    Aguardo explicações mais desenvolvidas tuas.

    Atenciosamente,
    V.P.

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  3. É uma característica muito peculiar da alma brasileira a incapacidade para homenagear as suas melhores mentes. Quase sempre os nossos maiores pensadores são relegados ao limbo. Essa homenagem a Freyre foi mais um capítulo desse vício. Vejamos um exemplo da maneira brasileira de homenagear (convidando um especialista na obra da escritora para mulherzinhas):

    http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/779081-benjamin-moser-ve-gilberto-freyre-mal-resolvido.shtml

    Ora, como admitir que um sujeito que não sabe absolutamente nada a respeito da obra do homenageado seja convidado para palpitar, para dizer o que “acha”, etc. Vergonhoso.

    Por outro lado, devemos reconhecer que nesse tipo de eventos nunca estão presentes os “grandes”, geralmente são convidados os autores da moda, os politicamente corretos, os que vendem mais, e por ai vai.

    Felizmente a obra de Freyre é maior do que todos esses iluestres que falaram sobre ele.

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